Superinteressante
filme mostra um lado triste da rede sociais |
Theodore (Joaquim Phoenix) é um ex-jornalista que trabalha
escrevendo cartas sentimentais para outras pessoas. Ele se separou da esposa e
vive dolorosamente só, até que compra e instala um software de inteligência
artificial, que assume a personalidade de uma mulher, Samantha (narrada por
Scarlett Johansson) e se manifesta através do smartphone de Theo. Eles começam
a conversar, se conhecem, se apaixonam, vivem encontros e desencontros. Esse é
o mote de “Ela”, quarto filme do diretor Spike Jonze – de “Quero ser John
Malkovitch” e “Adaptação”-, que estréia hoje nos cinemas brasileiros.
É um baita filme. Pelas atuações, pela cenografia (que constrói um
futuro familiar e ao mesmo tempo estranho), pelo roteiro. Mas principalmente, e
por isso quis comentá-lo aqui, pelo que diz sobre nossa relação com a
tecnologia. A vida preenchida por um fluxo constante de emails – muitos deles
com newsletters e propagandas inúteis-, o noticiário picotado e às vezes
frívolo da internet, todo mundo grudado no smartphone e obcecado pelas
redes sociais. Sair com alguém, num encontro, e descobrir quase tudo sobre
aquela pessoa na internet, antes mesmo de conhecê-la. Os games online,
habitados por criancinhas que falam palavrão. A pornografia online e sua
crueza. A tecnologia presente em todas as situações de forma discreta, mas
decisiva. “Ela” se passa no futuro, mas retrata um mundo muito parecido ao
nosso. Está na cara.
Como está na cara, também, a crítica que faz a isso. Porque no
filme as pessoas, essencialmente, são incapazes de ter emoções. Todo mundo é
tão neutro, no mau sentido, que ter e articular sentimentos vira até um
serviço, daí existir a empresa onde Theo trabalha, redigindo emoções para quem
não as têm ou não consegue manifestá-las. Em “Ela”, as pessoas sofrem de paralisia emocional. Querem mas não conseguem expressar
sentimentos espontâneos. Só conseguem manifestar um, e ruim: a ultraexigência.
Em certo ponto do filme, Theo sai com uma mulher de carne e osso – e ela, sem
entrar em spoilers,
age de modo grosseiro. Não porque seja má, mas porque está sendo ultrafranca, ultraexigente. Essas duas características, paralisia e
ultraexigência, dominam as relações humanas. Fazem tudo ser triste, solitário,
melancólico. “Ela” é um filme angustiante.
E inteligente. Porque mostra que ambos os problemas têm a mesma
raiz: a mediação e deformação das relações humanas pela tecnologia. Claro, esse
tipo de crítica sempre existiu. Quando os romances impressos começaram a se
popularizar, por exemplo, houve quem dissesse que sua leitura afastava e
alienava as pessoas. Dizer que a tecnologia X está piorando o mundo geralmente
é papo de ludita ou de gente que perdeu o bonde da História. Mas há indícios,
sim, de que a conectividade ininterrupta e a interação via redes sociais
estejam mexendo conosco e não necessariamente para melhor. Há estudos que comprovam isso, mas nem
é preciso recorrer a eles. Basta olhar para o dia-a-dia.
Cada vez mais, tudo o que a gente faz, come, vê ou pensa vai parar nas redes
sociais. Em si, isso não é ruim. O problema é que essa interação é assimétrica,
ou seja: primeiro você posta e depois as pessoas respondem àquilo. Não é algo
imediato, como conversar pessoalmente com um amigo falando o que der na telha.
É premeditado, porque você pensa antes
de postar. Você pensa em como as pessoas vão reagir. Como elas vão
interpretar sua fotinha, post ou comentário, quantos likes aquilo vai ter. Você
pensa nisso, e modela o que diz. É fato. E é normal. Porque ninguém quer dar um
fora, ainda mais em público e na internet, onde eventuais mancadas são muito
difíceis, ou impossíveis, de apagar.
Mas conforme as relações humanas vão sendo dominadas por essa
premeditação digital, as pessoas ficam cada vez menos espontâneas. Se expõem
menos. E quando se expõem, é da maneira mais previsível possível: de forma
insossa, contida, cuidadosamente calculada para evitar qualquer possibilidade
de discordância ou crítica, ou aderindo a uma facção ideológica na polêmica da
semana (aliás, a necessidade de se abrigar num clã de idéias ajuda um bocado a
explicar a radicalização e a trivialização do discurso na internet, mas isso é
assunto pra outro dia). Fica cada vez mais difícil articular idéias e emoções
realmente originais. Porque as redes sociais são promotoras naturais de
consenso você não segue as pessoas que pensam diferente de você. E porque, na
internet, dizer algo destoante se torna mais arriscado, pois a rede tem memória
eterna (você até pode tentar apagar algo, mas é provável que aquilo reapareça).
Fato. Tanto que até Eric Schmidt, ex-presidente do Google, disse que a internet deveria ter um botão delete, para que as pessoas pudessem apagar eventuais erros. Como
ele não existe, tentamos nos resguardar o máximo possível. “Ela” argumenta que
essa postura, ao longo do tempo, leva à desarticulação e à paralisia emocional.
A dinâmica das redes sociais também explica nosso segundo
problema. Na internet, todo mundo apresenta uma versão editada de si próprio –
mais bonita, mais feliz, mais esperta, mais viajada, mais legal, mais tudo. O
problema é que, com o tempo, você começa a achar que as outras pessoas
realmente são daquele jeito. E isso cria expectativas irreais, com relação a
você mesmo (que passa a achar a própria vida insatisfatória) e com relação aos
outros. Você tenta ser e espera que todo mundo seja tão bacana, na vida real,
quanto aparenta na internet. Com o tempo, isso se torna uma exigência. A
ultraexigência.
“Ela” mostra o que acontece quando esses dois processos são
levados ao limite. No filme, o único indivíduo capaz de emoções espontâneas é
justamente Samantha, o robô – que se arrisca, se expõe, comete erros. Nesse
aspecto, repete o insight do clássico “2001″, em que o robô HAL 9000, mesmo
falhando (ou justamente por causa disso) é mais humano do que os personagens
humanos. Mas, ao contrário de “2001″, “Ela” mostra um futuro plausível. Tirando
a inteligência artificial, que deve levar décadas para chegar a um nível
realmente inteligente (se é que vai chegar), o mundo mostrado pelo filme vai
acontecer. Já está acontecendo.Não precisa ser assim, claro. Sempre é possível fazer as coisas de outro jeito. Talvez alguém
consiga inventar o botão “delete” idealizado pelo Google, e isso faça com que as
pessoas se desinibam e desradicalizem ao mesmo tempo. Talvez as redes evoluam
de outra forma, e o futuro siga por outro caminho. Tomara que sim.
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