Um abraço emocionado de quatro dos cinco
filhos de Severina Maria da Silva, 44 anos, selou, no início da tarde desta
quinta-feira, o novo destino da agricultora caruaruense. A sentença de
absolvição que a livrou da condenação pela morte do próprio pai virou mais uma
página da dolorida história de vida da mulher e pôs fim ao polêmico julgamento.
Apesar de confessar publicamente e durante a sessão ser a autora intelectual do
crime, Severina foi isentada pelo júri da acusação.
Estuprada desde os nove anos pelo próprio
pai, com quem teve doze filhos, Severina repetiu para os jurados as atrocidades
de que foi vítima durante os 28 anos de abusos e admitiu que, diante do temor
do estupro de suas filhas, ao mesmo tempo filhas e netas do agressor, resolveu
mandar matar o pai.
Por quase três décadas, a agricultora
foi obrigada pelo pai a viver maritalmente com ele. As agressões sexuais
começaram aos 9 anos, com conivência da mãe da garota. Aos 15 anos, Severina
teve o primeiro de 12 filhos, a maioria morta por falta de acompanhamento
médico ou em consequência das agressões físicas do pai (e avô) dos bebês.
Apenas cinco crianças, hoje com idades entre 12 e 19 anos, sobreviveram.
Em 2005, quando Severino ameaçou abusar uma das
filhas-netas, de apenas 11 anos, Severina resolveu mandar matá-lo. A morte foi
encomendada a dois conhecidos de Severina ao preço de R$ 800.
O promotor do Ministério Público de
Pernambuco, José Edvaldo da Silva, surpreendeu os presentes pedindo pela
absolvição da ré, justificando que a acusada seria vítima de coação moral
irreversível e argumentou que o estado não poderia exigir que a forma
encontrada por ela para se defender fosse outra, ainda que envolva
violência. “Eu não poderia,
nem teria condições éticas, de pedir a condenação desta mulher, quando não se
poderia exigir dela outra conduta e quando ela deveria era ser indenizada pelo
estado”, resumiu o promotor, que evidenciou ainda o fato de que, entre
sucessivos estupros e agressões físicas e psicológicas, a acusada foi, de fato,
vítima de mais de 5 mil crimes não julgados ou investigados.
O argumento, o mesmo utilizado pela
defesa da acusada, foi reforçado pelo fato de Severina já ter procurado as
delegacias de Caruaru e Brejo da Madre de Deus cinco vezes, sem sucesso em
promover proteção a si mesma ou a seus filhos. Dos sete jurados presentes,
quatro eram mulheres, mesmo número atingido para declarar a absolvição de
Severina, já que não houve nenhuma manifestação contrária e os demais votos não
precisaram ser abertos. De acordo com um dos advogados de defesa, Gilvan
Florêncio, a decisão será analisada pelos advogados para verificar a
possibilidade de Severina iniciar um novo processo, dessa vez contra o estado,
em busca de indenização pelos danos sofridos pela vítima, mesmo ela tendo
procurado, por várias vezes, proteção policial.
Ao receber o resultado do júri
popular, no entanto, Severina não pensava em dinheiro. Agradecia a Deus pelo
livramento do pesadelo que a seguiu nos anos de abuso, seguidos por um ano e
seis dias reclusos na antiga Colônia Penal Feminina de Garanhuns e pelo tempo
em que precisou se defender das acusações, o que consumiu 35 anos de sua vida. “Só quero voltar para minha
casa, com meus filhos, e poder trabalhar. Se Deus quiser, minha mãe vai querer
voltar a falar comigo e eu vou esperar por ela. Acreditava que me considerariam
inocente, mas você tem que estar preparada para tudo, então tinha medo, mas a
vida vai ser diferente daqui para frente”, resumiu.
“Ela não queria que a história dela se
repetisse na filha”
Além da própria Severina, apenas a tia
dela, irmã do pai da acusada, foi ouvida enquanto testemunha. Otília Maria da
Conceição, de 86 anos, revelou que a situação em que a sobrinha foi submetida
durante anos, não era surpresa para familiares ou vizinhos, mas que não havia
possibilidade de denúncias formais contra Severino. “Ele era muito bruto. Tínhamos
medo dele bater ou matar a gente. Ele já batia bastante nela, desde cedo sendo
pai, mas também marido” lembrou.
O crime chamou a atenção de toda a
sociedade caruaruense, envolvendo faculdades de direito e organizações não
governamentais, que passaram a interceder por Severina. Justamente por essa
comoção, o caso acabou desaforado, sob o argumento de que a imparcialidade do
júri poderia ser comprometido e, assim, a questão acabou julgada no Recife, ao
contrário do que normalmente é feito (julga-se o caso na cidade em que ele é
cometido).
Representante do Centro de Referência da
Mulher, a psicóloga Wedja Martins, acompanhou a acusada nas duas cidades,
oferecendo suporte para a família durante o processo. “Ninguém é mais vítima nessa
história do que a própria Severina, que já tinha um passado de sucessivas
tentativas de fuga de casa e suicídio. A situação de vulnerabilidade só mudou
quando ela percebeu a aproximação do pai com sua filha e ela não queria que a
história dela se repetisse”, explica.
Diferente de Severina, os dois homens
contratados para realizar o crime, já haviam sido julgados anteriormente e
acabaram condenados. Edílson Francisco Amorim, o ‘Galego’, que, além da
motivação financeira, já tinha problemas pessoais com a vítima, já começou a
cumprir 18 anos de prisão no Presídio de Caruaru, junto ao cúmplice, Denisar
dos Santos, condenado a 17 anos.
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