Defensoria Pública garante mudança de nome e sexo em
Registro Civil
Por Lívia Amaral
Fotos: Ângela Scalon e Mantovani
Fernandes
A decisão que beneficiou Rafaella é esperança para outras transexuais. |
Às 11h15 do dia 2 de
janeiro de 2014 nascia Rafaella Vieira Miranda. Nascia em Hidrolândia, aos 33
anos, com um filho de pouco mais de dois anos e com um “armário lacrado”, para
onde não voltaria jamais. Foi nessa data, após 16 meses de processo judicial, que
ela recebeu sua nova certidão de nascimento, dessa vez com o nome e gênero
verdadeiros. Aqueles com os quais se identificou durante toda a sua vida e não
o que era delimitado apenas biologicamente.
A decisão judicial abriu as
portas e gerou esperança para tantas outras mulheres oprimidas em corpos
masculinos e homens presos em corpos femininos para obter o direito de mudar
seu nome e sexo no registro civil sem ter realizado a cirurgia para mudança de
sexo. Essa foi a primeira decisão judicial do tipo em Goiás, obtida pela
Defensoria Pública do Estado e com apoio da Secretária de Políticas para
Mulheres e Promoção da Igualdade Racial (Semira). Outros quatro casos, também
via Defensoria, aguardam julgamento.
Embora o conceito de
transexual ainda seja divergente entre o próprio público LGBT (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), basicamente trata-se de um
indivíduo que nasceu com um corpo X, mas sua identidade (se sente) como Y. O
gerente Especial de Políticas da Diversidade da Semira, Darlyton Barros,
exemplifica que seria semelhante ao filme brasileiro Se eu fosse você,
em que os personagens de Tony Ramos e Glória Pires acordam no dia seguinte e ao
olhar no espelho estão em corpos que não são seus. O mesmo ocorre com
transexuais, só que isso é desde que nasceram.
“Uma pessoa trans, que já
nasce e se descobre com uma inadequação física, que o corpo e a mente não estão
em congruência, muito pelo contrário, eles estão em conflito”, explica Darlyton. A
maioria das transexuais deseja fazer a cirurgia de mudança de sexo, mas isso
não significa que aquelas que não querem operar deixem de ser trans. Trata-se
de um procedimento cirúrgico arriscado e pelo SUS apenas quatro hospitais do
Brasil o realizam, por isso há uma grande fila de espera. Quem tem dinheiro na
grande maioria das vezes opta por operar na Tailândia, referência mundial nesse
tipo de procedimento.
Quando a psicóloga chamou
Virmondes Vieira Miranda Júnior para sua avaliação, todos da sala (assim como a
profissional de saúde) ficaram surpresos. Entre as 25 pessoas que estavam no
local, se levantou uma mulher. A psicóloga reformulou a pergunta:
“Desculpe senhora, eu chamei o senhor Virmondes. Eu chamei um homem e não uma
mulher”. Entendendo a confusão, ela respondeu: “Sou eu”. Ao entrar no
consultório em meio a outros psiquiatras, a mulher foi questionada: “Por
que está aqui?” A resposta era óbvia: “Eu estou aqui por causa desse
tipo de constrangimento”.
Esse constrangimento era
algo sofrido diariamente por Rafaella seja pessoalmente (ao ter que apresentar
seus documentos no banco, por exemplo, ou ao mostrar seu cartão de crédito e
ser taxada como estelionatária) ou até mesmo por telefone. Ela conta que ligava
na operadora de cartão de crédito e eles duvidavam que aquela voz feminina
fosse do titular do cartão.
O laudo foi definitivo e
embasou a decisão da juíza Sirlei Martins da Costa, que mesmo com parecer
contrário do Ministério Público, garantiu o direito a alteração do nome e sexo
no registro civil de Virmondes para Rafaella, e de masculino para feminino.
Agora ela, que está com a guarda provisória de seu filho em processo de adoção,
tem a chance de ter na Certidão de Nascimento da criança seu vínculo como mãe e
não como pai.
Embasamento jurídico
Defensora Pública Mônica Maria de Siqueira |
O direito de
a pessoa ser aceita pela sociedade foi o que embasou o processo judicial de
Rafaella, explica a advogada dativa (que atua pela Defensoria Pública) Mônica
Maria de Siqueira. “Os transexuais, as transexuais, as travestis, eles vivem à margem da
sociedade, vamos dizer assim entre aspas. Por quê? Problema de emprego,
problema de viagem… Das ações que eu tenho três delas, essas mulheres, essas
transexuais tiveram problemas em outros países. Foram expulsas dos países
justamente porque elas se vestem como mulheres, se portam como tal, mas a
documentação com o nome masculino”, pontua. Ela explica que são
princípios básicos constitucionais como o direito de ir e vir que estão sendo
desrespeitados.
Na decisão a
juíza pontuou que “de fato, entender que o órgão sexual define a sexualidade é restringir
o homem ao sexo biológico, sem levar em consideração o sexo psíquico. O ser
humano é muito mais do que a aparência do corpo e o Direito não pode fazer essa
limitação, sob pena de não reconhecer o ser humano em sua amplitude”. A
magistrada ainda reproduziu a argumentação da jurista Maria Berenice Dias que “a
função judicial é assegurar direitos, e não bani-los pelo simples fato de
determinadas posturas se afastarem do que se convencionou chamar de normal”.
Passo a passo
A Semira
possui o Centro de Referência Estadual da Igualdade (Crei), que funciona na
Avenida Goiás. Um convênio entre a Semira e a Defensoria Pública permite além
do atendimento social, psicológico e orientações jurídicas no local, que o
cidadão vítima de preconceito/constrangimento possa dar entrada a procedimento
judicial via Defensoria Pública na busca de seus direitos.
“Nesse caso
específico ela vai passar pelo serviço social e ser encaminhado para o
jurídico, onde vai receber uma orientação do nosso serviço jurídico – nossos
advogados – e vai ser encaminhada para a Defensoria Pública. O que acontece é
que nesse momento quando ela estiver com a nossa advogada, ela vai orientá-la
sobre o que é necessário ela fazer para facilitar o processo para chegar até a
Defensoria”, explica Darlyton Barros.
O defensor
Público Geral do Estado, Cleomar Rizzo Esselin, explica que como o Crei já
possuía um atendimento multidisciplinar o Estado avaliou por bem instalar esse
atendimento da Defensoria Pública no mesmo local. “A implantação desse núcleo lá
trouxe uma facilidade para as pessoas que buscam a informação ou o seu direito
com referência a alguma medida, mas que sentiriam constrangidas de estar em um
ambiente onde se trata de outras matérias e outras coisas”, avalia.
como o tema é tratado em outros estados |
Quem procura
o Crei com o desejo das alterações referente ao sexo no Registro Civil, também
recebe orientações sobre a cirurgia e seus direitos. Em relação à cirurgia ela
é feita em Goiás pelo SUS no Hospital das Clínicas, tem fila de espera e o
paciente deve passar por psicoterapia durante dois anos antes do procedimento
cirúrgico. A advogada do Crei, Beatriz Liberato de Sousa, revela que é
assegurado em lei o direito do indivíduo ser chamada pelo seu nome social (nome
que escolheu para si), mesmo que seus documentos mostrem o contrário (veja
no quadro ao lado como o tema é tratado em outros estados).
A cirurgia
também é um desejo de Rafaella, mas que está em segundo plano. Ela pretende
juntar dinheiro e fazer o procedimento na Tailândia, para que ela possa
organizar sua vida (trabalho, escola do filho) para o longo período de recuperação,
pois se trata de uma cirurgia extremamente delicada. Para ela, essa vitória
judicial era um sonho impossível e muito mais importante do que a cirurgia em
si. “Elas
são muito capacitadas, educadas, equipe maravilhosa. Elas me trataram com
carinho, respeito. O meu foco era a troca de nome e até então eu não achava que
isso poderia acontecer, porque seria o primeiro caso a acontecer aqui. Eu
entreguei nas mãos de Deus e aguardei”. Rafaella foi notificada da
decisão no final de dezembro e pode pegar seu primeiro documento (Certidão de
Nascimento) no dia 2 de janeiro.
Dr. Cleomar Rizzo explica da Defensoria no Crei |
A Defensoria
Pública oferece atendimento jurídico para pessoas que comprovem renda mensal
até o limite de três salários mínimos, ou seja, que não podem pagar os custos de
uma ação judicial sem prejuízo o sustento de sua família. Nos juizados
especiais cíveis, onde a Defensoria também atua as ações não podem ultrapassar
o limite de 40 (quarenta) vezes o salário mínimo. No ano passado o órgão fez
181.920 atendimentos. Em média são atendidas 15 mil pessoas por mês, 3 mil a
mais do que a média de 2012.
“A Defensoria Pública tem um
perfil de atendimento à pessoas em situação de vulnerabilidade – que têm
um perfil de até três salários mínimos – e todos que precisam de atendimento
ou atenção na área jurídica ou para encaminhamento de alguma situação a
Defensoria faz os atendimentos”, pontua Rizzo. Ele destacou que
o órgão tem atendimentos em áreas específicas, com defensores especializados em
determinado tema.
O serviço é
prestado no Fórum Desembargador Fenelon Teodoro Reis (Jardim Goiás) para as
áreas Cível, Criminal e Juizado da Mulher; no CREI – Núcleo Especializado de
Atendimento a Vítimas de Violência; Juizados Especiais Cíveis e Criminais;
Juizados da Infância e Juventude (Goiânia e Aparecida de Goiânia); Fórum de
Anápolis; e Fórum de Inhumas.
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